A APOSTA



    Sábado a noite ainda parecia ontem a noite quando passei pelos portões da escola na segunda-feira pensando que gostaria de ter tido mais tempo para trocar algumas palavras, para poder ter feito algumas perguntas e descobrir algo a seu respeito além do primeiro nome apesar de saber que mais tempo ao seu lado resultaria em mais beijos e abraços e não em perguntas e respostas.  Eu gostaria de me lembrar do som da sua voz tanto quanto me lembrava do sabor do seu beijo. Se nós tivemos nosso primeiro beijo, agora era chegada a hora da nossa primeira conversa. Eu me perguntava como seria aquela conversa tão importante na luz clara da manhã sem o disco do RPM, rodeados por alunos sedentos de fofoca para aliviar o tédio da segunda-feira de volta para escola. O que eu iria falar para ela quando nos víssemos?
Entrei na sala para a primeira sessão de tortura da semana disfarçada de aula matemática com a cabeça preenchida quase por completo com perguntas e muito pouco espaço sobrando para números. Eu sabia que tinha algum tempo antes de cruzar com ela no recreio, mas assim que passei pela porta da sala pude ver nos rostos do Fabiano e da Ana uma risada esperando por mim para poder sair. Eu estava muito feliz para me importar com uma sucessão de piadas sem graça prestes a começar e verdade seja dita, no lugar deles eu faria o mesmo. Nossa professora de matemática estava substituindo Dona Carlota que ficaria fora alguns meses de licença maternidade. A nova professora não parecia tão mais velha que seus estudantes, recém-formada, alta, cabelos marrom-claro que cruzavam as costas parando alguns centímetros antes de alcançar a cintura.  Suas curvas voluptuosas viviam nos sonhos dos seus alunos. Além da beleza era conhecida por estar sempre atrasada para suas aulas. Eu estava torcendo para que aquela manhã fosse a exceção a regra, para que ela chegasse na hora para me poupar alguns minutos de fogo amigo.
        - Tudo bem? - Disparou a Ana respondendo a própria pergunta com uma risada.
        - Eu estou ótimo. Obrigado! E você? - Tentei responder com a mais honesta cara de pau que tinha, evitando contato com seus olhos, focando no relógio atrás da mesa onde a professora já deveria estar.
- Eu acho que ele está melhor que ótimo, Ana! - Acrescentou o Fabiano com o entrosamento de uma equipe muito bem treinada.
- Como vocês dois são engraçados! - E antes que tivesse que me esquivar de outro ataque a bela professora entrou dizendo.
- Bom dia! 
Escutei todas as piadas que eles conseguiram pensar nos intervalos das aulas antes do recreio e assim que tocou a campainha corri em direção ao corredor. Antes que cruzasse a porta, ainda escutei o último golpe do Fabiano. 
- Corre, Romeo! Corre!
De longe avistei a Lu andando rápido na direção da minha sala e fiquei feliz em saber que também buscava por mim. De longe retornou o sorriso quando me viu e começamos a andar rápido na direção um do outro até pararmos poucos centímetros antes de nossos peitos se tocarem.
- Oi! - Falamos os dois ao mesmo tempo, da mesma forma desajeitada e ansiosa antes de compartilharmos risadas mal sincronizadas tentando esconder a timidez. Ficamos um na frente do outro sem saber se a ocasião requeria um abraço, um beijo ou talvez um aperto de mão, então resolvi falar. 
        - Vai você primeiro. - Eu disse enquanto ela cobria a boca com as mãos num esforço para tentar controlar a risada nervosa. - Tá bom, então começo eu. Oi Luana! Eu estava a caminho da escola hoje pensando em você, pensando naquela noite, como foi bom e como eu queria ver você de novo. Na verdade isso descreve todos os minutos da minha vida desde que você foi embora da casa do Fabiano. - Ela continuava sorrindo enquanto suas bochechas ficaram rosadas, sua maneira de dizer que ela também. - A gente não conversou nada na casa do Fabiano. Eu não sabia o que ia falar quando  visse você hoje, então resolvi falar a verdade. Estou com saudade sua, muita!
- Até agora eu estou adorando o que eu estou ouvindo! Eu sabia que você ia na festa. A Re e a Ana me confirmaram. - O rosado da bochecha virou vermelho e se espalhou para o resto do rosto. De repente ela parou e sua expressão mudou como se tivesse ficado na dúvida se deveria dizer o que estava pensando.
- O que foi? - Minha curiosidade insistia enquanto ela criava coragem para falar.
- É que… - Hesitou um pouco - Eu achei que você não tinha gostado de mim.
Agora era minha vez de não controlar a risada.
- Que foi? Que foi que eu falei? Falei alguma coisa errada? - Perguntou genuinamente confusa.
- Não, não, não é isso. É que eu não acredito no que você está dizendo. Eu pensei a mesma coisa naquela noite no ginásio do Otaviano. Eu tinha certeza de que você não tinha ido nem um pouco com a minha cara, especialmente depois daquele recreio quando encontrei você com a Ana. Aquele dia foi feio!
- Foi! - Ela confirmou.
- Tão feio assim? - Perguntei.
- Horrível! - Respondeu com uma risada transbordando de satisfação.
- Não foi o meu melhor desempenho!
- Nem um pouco. Mas foi engraçadinho!
- Sério? -  Perguntei enquanto ela confirmava com um gesto de cabeça mordendo o lábio inferior.
- Eu não acredito que você pensou que eu não tinha gostado de você! - Ela insistiu.
- Eu que não acredito que você pensou que eu não tinha gostado de você! - Insisti também.
- Agora você me deixou curiosa. O que mais você pensou de mim? Qual foi sua primeira impressão assim que me viu na quadra? Fala a primeira coisa que te vem na sua cabeça Julio. Não pensa! Fala! - Ela tinha na voz a excitação da curiosidade que tinha tomado conta dela, e nos olhos o olhar que deixava claro que eu não tinha alternativa a não ser jogar aquele jogo em que não havia uma opção onde eu ganhava. 
- Patricinha, rica e mimada! - Seu rosto rapidamente mudou de alegre para surpreso antes de mudar mais uma vez, agora para terror até que decidiu bater de volta.
- Idiota, metido e sem graça! 
- Como assim? - Perguntei confuso.
        - Idiota, metido e sem graça! Minha primeira impressão de você. - Insistiu. 
        - Mas eu não perguntei! - Respondi sorrindo com toda a indignação que consegui fingir estar sentindo.
        - Não importa! Você me chamou de patricinha, rica e mimada!
        - Mas você perguntou! - Argumentei.
        - Idiota, metido e sem graça!
        - Patricinha, rica e mimada!  
        - Idiota, metido e sem graça!
        Quanto mais a gente repetia, mais nossas vozes perdiam força ficando mais baixas e nossos corações mais altos. Nossas bocas começaram a salivar enquanto nossos olhos ardiam.
        - Patricinha, rica e mimada!  
        - Idiota, metido e sem graça!
        Coloquei minha mão na sua cintura puxando seu corpo contra o meu, sua boca continuava se movendo, seus olhos fixados nos meus. Nossos lábios movendo lentamente na direção um do outro até alcançar a distância onde não resta outra opção a não ser o beijo. As palavras começaram a se esfarelar antes de ter a oportunidade de serem terminadas.
        - Patricinha, ric...!”  
        - Idiota, met... e  s...!
        - Mais um beijo, dessa vez interrompido tão logo começou. Regina, Ana, Roberto, Rafa e o Fabiano saíram de trás de uma coluna pulando, gritando, comemorando como se o Brasil tivesse ganhado a Copa do Mundo antes de perceberem que agora nós podíamos vê-los. A primeira reação do nosso grupo de amigos xeretas foi frisar como se estivessem brincando de estátua, na verdade como quem é pego no flagra antes de começarem a caminhar lentamente na direção do pátio da escola. A Ana e a Regina fingiam estar conversando enquanto caminhavam, o Fabiano olhava para os lados e assobiava com as mãos nos bolsos, e o Rafa continuava olhando na nossa direção e sorrindo enquanto era arrastado pela camiseta pelo Roberto. Nós dois compartilhamos uma risada envergonhada até que eu perguntei.
        - Você vai na casa da Ana sábado?
        - Eu não fui convidada.
        - Por falar nisso, eu queria te convidar pra ir na casa da Ana no sábado!
        Ana era uma daquelas pessoas que parece ter nascido com o botão da tristeza quebrado vivendo em um estado constante de sorriso, irradiando a todo instante um manifesto a favor da felicidade impossível de ignorar. Por muito tempo eu acreditei que ela era capaz de chorar apenas na teoria até um dia antes da aula começar quando a encontrei sozinha no final do corredor vestindo um rosto triste que não era ela. Se seu pai não trabalhava apesar de parecer jovem demais para estar aposentado, sua mãe trabalhava por muitos viajando para São Paulo durante a semana e voltando para Poços na sexta-feira à noite para passar o fim de semana com a família. O pai da Ana era um homem do interior como tantos que eu conheci e aprendi a amar além de admirar além de me tornar que viviam de gestos gentis e personalidades fortes e que falavam alto com voz baixa. As lágrimas de Ana tinham o endereço do peito do seu pai onde batia um coração enorme além de doente.  Sua mãe mesmo se quisesse não conseguiria esconder ser a mãe da minha amiga ou ter nascido e crescido na grande metrópole. Além do forte sotaque paulista, as duas falavam, sorriam e gesticulavam alto como se o espaço ao seu redor fosse uma folha em branco a ser preenchida com pontos de interrogação, exclamação e poucas vírgulas. Ana nunca me contou exatamente o problema que seu pai tinha no coração, e eu nunca insisti quando seu rosto triste e o incomum espaço vazio ao lado dela deixaram claro que falar sobre uma doença que não tinha sentido e cura lhe causaria mais dor. Os olhos sabem falar com cores impossíveis de ignorar e naquele momento eles gritaram em um escuro silêncio o pedido de um abraço apertado e um ombro para escorar por um instante a tristeza que pesava dentro do peito da minha amiga. 
        Com o agravamento da doença seu pai passou a fazer viagens frequentes para São Paulo para se tratar acompanhado da mulher. Quando A Re descobriu que ele teria que passar 2 semanas fora sem poder retornar para casa decidiu convocar a tropa dos apaixonados pela Ana para um sábado de diversão e esquecimento das dores da vida. Nos encontramos no terminal para pegar o ônibus para a chácara onde a Ana morava longe do centro. O dia foi todo planejado começando com chegar bem cedo e preencher todos os minutos do relógio deixando o menos tempo possível para ser preenchido com a dor do inevitável. Assim que chegamos foi dado o início a uma partida de vôlei com uma rede tão improvisada quanto o resto daquele dia no quintal da chácara e a promessa de que eu e o Roberto não jogaríamos no mesmo time por sermos os mais altos do grupo. Não havia no nosso grupo um mestre na arte da culinária ou alguém capaz de cozinhar um arroz que não ficasse duro ou empapado e sobrou para mim o estrogonofe de frango que eu fazia e que com alguma boa vontade dava para comer sem fazer careta. Com o arroz que a Ana fez e que naquele dia escolheu ficar duro e a salada sem tempero da Regina nós tivemos um dos melhores almoços das nossas vidas. Depois de um esforço coletivo para limpar a louça, preparamos a mesa para um jogo de cartas. Eu me sentei de um lado e a Lu do outro em um esforço não coordenado de parecer apenas bons amigos em um grupo de amigos sem saber que isso estava prestes a mudar radicalmente. O jogo de cartas não deu nem um pouco certo com a Re e o Rafa tendo dificuldades para entender as regras que eram fáceis de entender a não ser que você não fizesse o menor esforço, não demorando muito para ficar chato. Para tentar escapar do tédio a gente falava qualquer coisa que passava pelas nossas cabeças, o que parecia uma boa ideia não fosse pelo fato de que o Rafa fazia parte do grupo. Ele então começou a falar sobre um assunto que interessa a qualquer adolescente, beijo.
        - Quanto tempo vocês conseguem beijar alguém?
        - Sua pergunta é muito idiota Rafa. Não faz sentido algum. - Regina respondeu.
        - Não, escuta. - Insistiu. - Eu estava assistindo um filme novo que chegou na locadora na semana passada que eu prefiro não entrar em detalhes e me veio essa pergunta na cabeça. Quanto tempo você consegue beijar alguém sem separar as bocas?
        - Além de idiota você é um pervertido! Continuou Regina enquanto virava os olhos em desaprovação. - Eu não sei o que você tem dentro da cabeça, na verdade é melhor nem saber! 
        - O problema é que ele não pensa pra falar ou até pensa e mesmo assim fala as coisas que fala - Todos riram do comentário do Roberto.
        - Eu acho que você pode beijar por horas. - Disse Fabiano como se estivesse falando por experiência e sorrindo sem se dar conta do olhar raivoso e ciumento da Regina.
        - É sério! Vocês nunca pensaram no esforço físico que é beijar na boca? Eu li numa revista que eu também prefiro não entrar em detalhes que você pode perder entre 2 ou 3 calorias beijando ou até 26 se for aquele beijão assim daqueles de novela! -  Enquanto todo mundo ria ele continuava acrescentando um tom sério como se estivesse ministrando uma aula. - Você mexe 30 músculos para beijar alguém.
        - 5, 10, talvez até 15 minutos se o cara for gato. Disse Regina tentando deixar o Fabiano com tanto ciúme quanto ela.
        - Meia hora! - Luana estava quieta até aquele momento e todos ficaram surpresos com a exatidão do número.
        - Como assim? Você já beijou alguém por meia hora? - Perguntou Regina se esquecendo por um instante do ciúme que sentia.
        - Não, mas eu sei que a gente consegue. - Foi então que me dei conta de que por a gente ela se referia a nós dois sem se preocupar em me consultar. Não achava possível, mas estava me apaixonando ainda mais por aquela menina.
        - Eu duvido! - A voz do Rafa refletia a excitação que todos começavam a sentir. - E eu aposto que não consegue!
        - Você não tem dinheiro para apostar Rafa! - Achei que era uma boa hora para me pronunciar.
        - Não tem problema. Se o Rafa perder eu alugo um filme na locadora de graça e se eu perder eu peço dinheiro pra mim mãe e compro pra ele um pedaço de floresta negra na Galeria Kyoto. - Tenho que confessar que nesse momento pensei seriamente em sabotar a aposta se o Rafa concordasse em dividir o pedaço de bolo comigo. 
        - Fechado! - Rafa estendeu sua mão para selar a aposta.
        - Espera, eu vou pegar o relógio para marcar o tempo! - Ana disse se levantando e correndo para o quarto. Enquanto isso eu assistia às peças do quebra-cabeças daquele desafio do qual era parte importante se movendo ao meu redor, bem na frente dos meus olhos sem poder dar palpite. Fomos para o quintal onde nossa rede de vôlei estava caída no chão, o palco para o desafio onde a Lu e eu teríamos que beijar por 30 minutos sem desgrudar os lábios. Ana voltou do quarto com o relógio na mão, a Regina logo atrás carregando uma cadeira da cozinha. Sentei na cadeira e a Lu no meu colo de frente para mim. Passei meus braços em volta da sua cintura puxando seu corpo para perto do meu, ela descansou seus braços em cima dos meus ombros. Ali estávamos olhando um nos olhos do outro, aprisionados em um espaço tão pequeno dentro do furacão que se movia dentro de nós todas as vezes que nossos corpos ficavam a menos que um suspiro de distância. Nos seus olhos eu vi fogo que ao invés de me assustar me puxava em direção a ela. Ela tinha o olhar de quem estava prestes a fazer coisa errada com a pessoa certa. Eu sorri primeiro, ela respondeu com um sorriso que parecia dizer me segue.   
        Sem conseguir esconder a excitação de expectadora, Ana gritou. - Valendo!
        No começo o mais difícil era controlar a risada enquanto todos ao nosso redor tentavam sabotar a aposta a favor do Rafa com palhaçadas, caretas, piadas, me fazendo pensar que havia um acordo para dividir o bolo. O Rafa chegou a ameaçar baixar as calças, mas felizmente a Ana estabeleceu o limite do que podia ser feito para nos tirar a concentração em mostrar a bunda. Aos poucos eles foram perdendo interesse no casal apaixonado que além de beijar conseguia rir de lábios colados e se sentaram no chão para conversar. Com o silêncio ao nosso redor, mergulhamos mais fundo um dentro do outro e o beijo deixou de ser engraçado ficando devagar, sério, pesado no mesmo ritmo da respiração e das batidas dos nossos corações. Eu fui tomado por uma sensação muito forte de que algo estava acontecendo e ela também. O sol queimava forte sobre nossas cabeças fazendo com que a temperatura do lado de fora fosse quase tão quente quanto o calor escaldante dentro dos nossos corpos. A única coisa que nos impedia de tirar a roupa era a plateia sentada no chão a poucos metros. Não demorou muito para o corpo começar a doer, para ter câimbra em lugares onde não deveria ser possível sentir câimbra. Primeiro nos movíamos um pouco mudando de posição para evitar a dormência, depois nos levantamos e caminhamos para encostar em uma parede perto da cadeira, tudo sem desgrudar como contorcionistas de circo. Às vezes a gente se movia e ria ao mesmo tempo da situação ridícula na qual nos metemos. Primeiro foram as pernas, depois os braços, os ombros, os músculos do rosto, quem poderia dizer que a mandíbula podia doer tanto até que todo o corpo doía em sincronia. A mente também deixa de obedecer e começa a se mover para brigar contra a imobilidade do corpo.  Eu não deveria ter bebido tanto refrigerante! Eu deveria ter ido ao banheiro! Pensei primeiro antes de pensar sobre o que ela estava pensando naquele exato momento. Tentei distrair minha mente com as contas que tinha que pagar, a comida da cachorra que esqueci de colocar, laranjas rosas, alienígenas verdes…
        - Acabou o tempo! Ana gritou com mais excitação na voz do que quando começamos. Perdemos a noção do tempo quando finalmente abrimos os olhos…]

        “Uh, amor, você sabe o que vale a pena?
        Uh, o céu é um lugar na terra
        Eles dizem que no céu o amor vem em primeiro lugar
        Vamos fazer do Céu um lugar na Terra
        Uh, o céu é um lugar na terra”
        Heaven is a Place on Earth by Berlinda Carlisle

         …e nos olhamos mas nossos lábios se rebelaram recusando a se separar. Não estava certo se era porque queríamos continuar beijando ou se era medo da dor. Ficamos ali ainda por alguns segundos enquanto a expressão em nossos rostos passou de felizes para preocupados, para atordoados e tomados por um medo compartilhado do que nossos olhos gritavam, a pequena frase de 3 palavras que as pessoas frequentemente falam com a boca sem sentir no coração. Quando desistimos de resistir, sorrimos mais uma vez, nossos olhos se encheram de lágrimas e nos separamos antes que começassem a correr pelos nossos rostos doloridos. Todo o romance desapareceu tão logo meu corpo foi tomado por uma dor similar a de quem correu uma maratona sem nunca ter treinado um dia. Naquele dia eu aprendi como podem doer os músculos do rosto e aquele beijo de 30 minutos também me ensinou que não só os pequenos perfumes mas também as grandes tempestades podem vir nos pequenos frascos.
        Daquele dia em diante a gente desaprendeu a estar um longe do outro e o tempo se tornou às vezes aliado, outras desafio para a felicidade de estar perto, presente ao lado de quem se ama.  Na maioria das vezes o ao nosso lado estava preenchido por um grupo de amigos unidos pela sede de ser feliz que transborda pelos poros da juventude, mas com os olhos a gente sabia desligar o resto do mundo e acordar no planeta somente eu e ela mesmo que cercados por gente por todos os lados. Quando o sinal da última aula chamava era hora de guardar os livros na bolsa, o sorriso no rosto e encontrar a Lu no corredor e com o resto da turma brincar o caminho de volta para casa para almoçar antes de nos encontrarmos de novo à tarde para fazer nada juntos. Morando do lado oposto do terminal de ônibus, o Roberto era o primeiro a dizer adeus assim que a gente cruzava os portões da escola enquanto o Rafa que morava a duas quadras do colégio e era o próximo a nos deixar. Eu e o Fabiano caminhávamos com as meninas até o terminal e depois que elas pegavam o ônibus a gente ainda andava juntos por alguns quarteirões até que cada um tomasse seu caminho. Os passos que dividiam a escola do terminal de ônibus se tornaram a celebração de uma realidade que de tão fantasiosa às vezes parece que só ter existido em um filme de comédia romântico trágico dentro das nossas cabeças onde éramos ao mesmo tempo os protagonistas e a plateia. Eu sabia que éramos felizes sem ter noção do quanto e não sei se teria feito algo diferente se soubesse, até porque olhando para trás, talvez seja assim que funcionem as engrenagens da vida. A vida mestre suprema em espremer nossas melhores memórias dentro de instantes no dia a dia quando ela sabe que não estamos prestando atenção se aproveitando da nossa distração para nos presentear com as lembranças que mais vamos precisar quando envelhecermos. A saudade é a lembrança daquilo que de verdade importa, um presente da vida para não nos sentirmos tão sozinhos quando o tempo carregar para o passado aquilo que faz valer a pena sorrir ou chorar. Eu odeio física mas aprendi o suficiente para entender que a felicidade não respeita suas leis, muito menos a lógica. Eu estou falando daquela felicidade de verdade que a gente tenta tanto encontrar palavras para expressar mas não consegue. Felicidade que parece grande demais para caber dentro de grande demais ou que parece transbordar para além de apenas uma vida, que só encontra seu espaço em momentos perfeitamente pequenos e simples e perfeitos demais, instantes infinitos e mágicos como andar alguns quarteirões ao lado de amigos, de mãos dadas com o amor da sua vida compartilhando muitas risadas além de muitas palhaçadas.
        Antes de chegar no terminal a Ana dava risada, a Regina reclamava, os meninos conversavam e a Lu e eu éramos felizes.
        - Eu sou mais alta que a Lu. - Disse a Ana uma vez tentando manipular os fatos para parecer que não era baixa como de fato era durante uma conversa que as meninas tinham sobre modelos de passarela. Eu tentei ficar quieto, mas tudo nessa vida tem limite e em prol da verdade eu tinha que esclarecer os fatos.
        - Ana, você sabe que mais alta que a Lu não significa alta, não sabe? - Imediatamente após meu comentário inocente a Lu cruzou os braços, mordeu o lábio inferior e me metralhou com os olhos me dando mais munição. - Lu, você está parecendo cansada, se quiser eu te carrego dentro do meu bolso. - Eu nunca fui capaz de resistir a sua cara linda zangada.
        - Sabe que eu realmente estou cansada. Eu estava até pensando que a gente podia pegar um ônibus, mas aí eu me lembrei que sua cabeça não cabe dentro dele. - Eu sabia que era só questão de tempo até ela revidar, mas aquele golpe foi baixo demais. Infelizmente não tinha mais volta, a guerra entre nós estava declarada.   
        - O que você falou, Luana? - Perguntei, olhando nos seus olhos enquanto ela não disfarçava a satisfação com o ataque que havia desferido. - Repete se você tiver coragem? - Insisti enquanto ela começou a caminhar lentamente para se esconder atrás da Regina antes de continuar disparando.
        - Não ouviu? Pelo jeito a orelha não é tão grande quanto a cabeça! - Já não controlava a risada enquanto se abaixava mais, desaparecendo atrás da amiga.
        - Tudo tem limite e você vai pagar caro por isso!
        Comecei a correr atrás dela que imediatamente correu para escapar de mim, os dois correndo em círculos em volta da Re enquanto a Lu suplicava por ajuda. 
        - Re, me ajuda! Por favor! Me ajuda! - No final as palavras já nem mais saiam de tanto que ela ria. Regina, a única que não sorria, tinha uma expressão mais zangada que de costume. Por fim agarrei-a pelas pernas, levantei a Lu do chão e joguei seu corpo pequeno e delicado por cima dos meus ombros. Ela agora batia nas minhas costas ainda suplicando por ajuda.
        - Eu te avisei Luana. Você vai pagar caro pela brincadeira.
        - Ana! Re! Por favor, alguém me ajuda!
        - Vocês dois são muito tontos! - Ana respondeu rindo. 
        Todos assistiam a nossa batalha até que sem conseguir controlar minha risada a coloquei no chão e nossas risadas se uniram em uma única voz.
        - Eu espero que você tenha aprendido sua lição! Eu falei olhando no seu rosto que me olhava de volta com o sorriso maroto de quem para minha alegria nunca iria aprender sua lição. Me virei para continuar andando e  depois de alguns passos escutei um assobio que parecia alto demais para ter saído de um corpo tão pequeno. Me virei na sua direção enquanto ela seguia parada com os punhos cerrados descansando na cintura ao lado do corpo, batendo o pé impacientemente e me olhando com cara de você vai me deixar aqui? Me virei de costas pra ela, me abaixei e coloquei as mãos nos joelhos enquanto ela deu dois passos para trás antes de  correr e  pular nas minhas costas abraçando minha cintura com suas pernas e meu peito com seus braços. Sentia sua respiração e seus cabelos acariciando minha nuca, seu coração batendo feliz nas minhas costas.Todos os dias após a aula eu carregava a Lu por uma parte do caminho para o terminal.
        Ainda hoje quando fecho os olhos, posso sentir suas mãos apertando forte meu peito como se pedissem para não sair mais dali. Eu deveria ter escutado.


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